A propósito de “Tuítes póstumos de um herói nacional”
“Para fazer uma excelente sátira, basta dizer a maior parte das coisas como elas realmente são.” (Karl Kraus)
O argumento de Tuítes póstumos de um herói nacional [1] é simples: Messias Botnaro, alter ego de Messias Bolsonaro, morre de COVID-19 e resolve escrever “tuítes póstumos” do além. À primeira vista, teríamos mais um livro na tradição dos “diálogos dos mortos”, iniciada na Antiguidade por Luciano de Samósata e que inclui, entre seus representantes ilustres, Machado de Assis e suas Memórias póstumas de Brás Cubas. De fato, a comparação com Machado é imediata: da estrutura em capítulos curtos à estratégia do “defunto autor”, passando por várias citações a textos do Bruxo do Cosme Velho, há um intertexto óbvio entre Tuítes póstumos e as obras do criador de Brás Cubas. Porém, há também uma diferença entre ele e seu precursor ilustre, a qual é apontada pelo próprio Botnaro:
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. O uso vulgar seria começar pelo nascimento. A opção adotada foi imitar outro célebre defunto autor, que também contou a sua morte e a pôs no introito. Mas ao contrário do meu antecessor, eu me vi frente à impossibilidade de contar uma história linear e organizada. Tratando-se agora de publicar o livro, a médium que me psicografou e a minha editora acharam que a parte relativa ao essencial, desbastada e estreita, só com o que liga mais ou menos o mesmo assunto, em três capítulos relativamente autônomos, talvez interesse, apesar da forma de tuítes que tem: diferença radical entre este livro e o ilustre concorrente. (Advertência, p. 12–13)
Pode-se discordar de Botnaro quando ele afirma que Memórias póstumas é uma narrativa “linear e organizada”, já que a história de Brás Cubas é cheia de saltos, interrupções e digressões. Como se sabe, o “defunto autor” de Machado de Assis compara seu estilo ao passo dos bêbados, que “guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem…”. Mas, mesmo assim, a história de Brás Cubas constitui uma unidade, ainda que não-linear, pois é a narrativa de uma vida. Tuítes póstumos não é uma narrativa: é uma coletânea de fragmentos, cuja única unidade é o assunto, que permite reuni-los em três capítulos relativamente independentes.
Essa diferença não me parece casual. Brás Cubas é um indivíduo, Botnaro não: como ele próprio afirma na mesma “Advertência”, no mundo dos mortos “não há sujeito, apenas agenciamentos coletivos de enunciação”. Isso fica claro quando lemos seus tuítes, compostos basicamente de colagens de frases de Olavo de Carvalho, Jair Bolsonaro, Damares Alves, Regina Duarte, Ricardo Alvim e outros luminares do governo federal. Falta de criatividade? Se considerarmos que a literatura não é a realidade, que existe uma fronteira clara entre realidade e ficção, talvez pudéssemos dizer que sim. Mas o que acontece quando a própria realidade se dissolve nas fake news e na pós-verdade das teorias da conspiração? O que acontece quando a fronteira entre realidade e ficção é borrada? A resposta é dada no “Pósfacio” do livro de Botnaro:
Políticos brasileiros transformam o grotesco em literatura. Nihil novi sub sole — releiam os poemas satíricos de Gregório de Matos. A novidade é que se pode levar mais ou menos a sério a ideia de que o noticiário político brasileiro é um ramo da literatura fantástica ou do realismo mágico. Superamos o surrealismo.
Quando a própria realidade se transforma num ramo da literatura fantástica, o escritor não precisa transformar nada em ficção, pois a própria realidade já está ficcionalizada. Nesse caso, pouco importa a criação de uma “obra” que se diferencie dos textos da realidade cotidiana: os próprios textos da realidade cotidiana podem ser deslocados e transferidos para o espaço do livro, numa espécie de ready-made literário. Porém, se os ready-mades de Marcel Duchamp tinham como objetivo pôr em questão a diferença entre arte e mercadoria, ao deslocar um produto comercial de seu uso utilitário para o espaço do museu, os tuítes de Messias Botnaro não apenas suspendem a diferença entre realidade e ficção: eles são principalmente uma denúncia do grotesco e do ridículo da realidade política brasileira e de seus reflexos na linguagem.
Nesse sentido, mais do que Machado de Assis [2], penso que é a obra do austríaco Karl Kraus a que mais se aproxima do projeto de Messias Botnaro. Contemporâneo da ascensão de Hitler ao poder, Kraus percebeu que o nazismo não era apenas um fenômeno político, mas principalmente o resultado de uma profunda corrupção da linguagem. Sua última obra, A terceira noite de Walpurgis, publicada postumamente em 1952, é um testemunho disso: numa sátira que costura notícias de jornal, frases feitas, trechos de livros, poemas, discursos, Kraus compõe um painel do pesadelo do Terceiro Reich e de sua “novilíngua”.
Por outro lado, uma vez que a “novilíngua” do bolsonarismo é veiculada principalmente através das redes sociais, a estratégia do “defunto autor” ganha um novo significado: se no romance de Machado ela assegura ao autor a possibilidade de assinar seu texto sem assinar as ideias expressas no texto [3], no texto de Botnaro não há nenhuma assinatura, pois não sabemos (até agora) o autor real por trás da persona literária. Mas isso, no fim, pouco importa: não seria esse anonimato, ele próprio, uma denúncia do anonimato nas redes sociais, nas quais se pode defender de tudo sem assumir responsabilidade sobre o que se defende? A forma do texto não parece sugerir isso, já que a opção pelo fragmento pode ser uma sátira à incapacidade de Botnaro/Bolsonaro de “elaborar discursos complexos, que tampouco seriam inteligíveis para os seus fanáticos seguidores”, como afirma Orvalho de Farfalho no “Posfácio” ao livro?
Deixo essas perguntas em aberto, pois é impossível respondê-las. No texto literário, a alternativa entre a defesa ou a denúncia do anonimato das ideias é um falso dilema. No final das contas, interessa mais a capacidade do texto de produzir sentidos do que remetê-lo a uma suposta “intencionalidade” autoral. Como diz o próprio Brás Cubas, “a obra, em si mesma, é tudo”. Leia-a o leitor e tire suas próprias conclusões.
[1] O livro pode ser baixado de graça aqui.
[2] É preciso reconhecer que essa possibilidade já estava presente no livro de Machado: de fato, a interpretação que um Roberto Schwarz faz de Memórias póstumas defende que a obra seja uma crítica ao modo de vida da elite brasileira da época, através da persona do “defunto-autor”.
[3] Como diz o crítico português Abel Barros Baptista no prefácio a uma das edições de Memórias póstumas de Brás Cubas (Rio de Janeiro: Globo, 2008), o romance assegura uma possibilidade praticamente única ao escritor: dizer algo sem que isso lhe possa ser imputado.